por Abia

Food Tech: Cozinhas Escuras, Processos Claros

O fenômeno conhecido como dark kitchens, ou ghost kitchens, ganhou força expressiva durante os últimos anos devido ao período pandêmico. Até mesmo os clientes mais tradicionais se renderam à experiência de saborear seus pratos preferidos em casa. O impacto deste período foi impressionante no setor de alimentos e bebidas e levou muitos grupos a criarem dark kitchens, por vezes compartilhadas para suas diversas marcas. Em alguns cenários, houve a formatação de dark kitchens compartilhadas para mais de um restaurante de diferentes proprietários inclusive.

O lado positivo desta tendência é a diminuição de custos. Ainda que algumas redes tenham adotado políticas de descontos nos pratos para delivery esta não é a realidade da maior parte dos projetos de cozinhas centrais, que permanecem produzindo pratos iguais aos dos restaurantes físicos, no formato e no preço. Desta forma, o custo de produção cai drasticamente por não haver a estrutura do ambiente físico, garçons etc., e o lucro cresce proporcionalmente. A permanência de alguns desses modelos de preparo mesmo com o retorno às atividades presenciais demonstra sua atratividade em custo-benefício.

Por outro lado, as dark kitchens tendem a se tornar espaços menos convidativos aos cozinheiros, aos chefs que apreciam ver e ser vistos durante o cozinhar, uma vez que a necessidade de um design interessante aos clientes que visitam a cozinha desaparece e esta se torna um espaço completamente funcional. Muitas pessoas trabalhando em espaços reduzidos, longe do glamour dos restaurantes renomados onde muitas destas receitas foram concebidas.

O conceito de design de cozinhas, em especial àquelas dedicadas à alta gastronomia, ganhou então novos contornos, uma vez que os clientes não visitam mais o espaço durante o preparo das refeições e os ambientes necessitam de menos requinte e mais tecnologia de alimentos. Quanto mais autônomo e versátil, mais convidativo o maquinário.

Diversos autores trazem há algum tempo esta demanda de mercado, de mais tecnologia nas cozinhas não apenas a título de melhoria de processos, mas efetivamente de redução de espaços. É uma tendência das sociedades modernas e das cidades inteligentes: A proposta de novas tecnologias de cocção que agregam funções e permitem a produção de grandes quantidades em pequenas cozinhas e/ou o uso de espaços para cozinhar sob demanda de maneira compartilhada.

Neste cenário surgem novos tipos de equipamento no estilo multitarefas, que desempenham diversas atividades e otimizam o espaço da cozinha. Considere, por exemplo, que você condensa em um mesmo equipamento um conjunto de funções para um preparo que antes necessitariam de um fogão, um forno e uma estufa de fermentação? É evidente o ganho de espaço. E esse é um exemplo simples, já há propostas muito mais sofisticadas. Além disso existe a diminuição da necessidade de pessoal especializado para organizar as transições de alimentos entre processos e equipamentos, visto que as novas gerações de equipamentos permitem integração wi-fi e possuem funções inteligentes que muitas vezes permitem a alteração de processos sem nem mesmo a necessidade da troca de aparelhos, o que há alguns anos seria aceito como uma ideia distópica. Sem contar a facilidade da limpeza do ambiente. A modernidade e redução de custos é indiscutível, já as maneiras de fazer isso sem que a comida perca a identidade de cada cozinha, e de uma maneira que aqueles que cozinham continuem imprimindo seu encanto aos seus preparos, precisam ser discutidos.

Cozinhas mais modernas já podem ser controladas pelos responsáveis à distância, com disparos de produção feitos por celular de qualquer canto do mundo que tenha internet. O resultado é que temos cozinhas com um terço do espaço sendo operadas por poucas pessoas e produzindo quantidades de refeições que, no modelo tradicional, demandariam espaços gigantes e uma multidão cozinhando. O grau de inovação é genial.

Para a funcionalidade dessas cozinhas hi-tech em um padrão de qualidade elevado é necessária padronização e clareza de processos, tudo extremamente alinhado, uma vez que o ajuste manual, o toque do cozinheiro a um preparo que não saia como planejado, perde espaço. A receita que não apresenta o resultado final esperado deixa de ser um experimento, é um erro a ser descartado. A tecnologia nas cozinhas industriais não chega aos pés da tecnologia humana no aspecto criatividade.

A modernização das cozinhas é um grande passo para o aumento de qualidade e para o crescimento do food service. Evidente. Não é mais se (modernizar a cozinha ou não), é como (fazer isso sem que se perca a autenticidade na automatização dos processos).

E a questão humana é a questão mais importantes que surge em contraponto à otimização do espaço da cozinha. A diminuição considerável de pessoas manipulando os alimentos diminui custos, permite modelos de cozinha menores e mais funcionais, especialmente no modelo dark/ghost kitchens, e permite um controle sanitário bastante rigoroso, auxiliando a sanar um problema importante da área gastronômica e nutricional que é a manutenção dos padrões de higiene. Entretanto cozinhar é ato de cultura e pessoas fazem cultura, máquinas não.

Entender como se dá a participação humana neste novo conceito de cozinha, onde quase tudo pode ser automatizado e processos já não correm o risco de terem um preparo diferente do proposto, é um grande desafio para aqueles que se dedicam ao food service e à gastronomia em geral, que entendem que o que se serve para comer é mais que alimento para o corpo, alimenta também a alma. O potencial criativo e criador daqueles que cozinham é fator importante no resultado final de um prato e muitas das grandes criações do homem na cozinha resultaram de “erros” em processos e receitas já consolidados, que receberam novas interpretações ligadas a história de vida e valores culturais do cozinheiro responsável. O doce de leite é resultado de leite e açúcar esquecidos no fogo, o tofu se originou de um acidente químico quando um cozinheiro derrubou nigari, coagulante natural, no leite de soja, e a famosa tarte tatin nasceu do esquecimento de uma cozinheira que esqueceu de colocar primeiro a massa na forma – e assou por cima do preparado de maçãs. Com processos automatizados não teríamos nenhuma dessas três delícias hoje.

O grande desafio do campo da food technology é encontrar o equilíbrio entre a participação humana, fundamental na construção da comensalidade, e as possibilidades oferecidas por equipamentos de altíssima performance integrados. O investimento em treinamentos para integração entre quem cozinha e as máquinas, permitindo que os equipamentos se tornem ajudantes perfeitos e que a criação de novas receitas continue possível, mantendo as características de cada chef e restaurante, parece ser o caminho a ser seguido – ainda que encontre barreiras e preconceitos no que diz respeito à uma relação saudável entre pessoas e máquinas no comando das cozinhas quando se trata de gastronomia autoral. Em especial quando não é possível ao comensal enxergar o que acontece, assistir ao espetáculo do alimento sendo preparado.

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